Hoje é vinte e três, véspera da véspera de Natal. E como dizem as boas
línguas, o melhor da festa é esperar por ela. Eu sempre passei por este
dia rememorando outro 23 de dezembro, quando meus avós maternos ainda eram
vivos. Com os paternos convivi pouco, eles morreram cedo. Fiquei só com as
histórias, que meu pai conta até hoje. Neste dia 23 a casa estava cheia, embora
a grana fosse curta. O quintal era uma festa de primos, todos correndo em volta
do canteiro. O cardápio ficou a cargo da minha mãe. Era sardinha frita. (Ela
dizia sempre que comeu muita sardinha quando grávida de mim, por isso nasci tão
inteligente). As frituras eram raras na casa da minha vó Maria. Naquele dia não
aconteceu nada assim tão extraordinário, nada de tão especial. Ouvíamos música,
brincávamos... As mulheres se acotovelavam na cozinha... nada que merecesse uma
manchete de jornal. O fato sobrenatural estava, definitivamente, dentro de nós.
Faz apenas um mês hoje. O trabalho, a correria dos preparativos para
as festas... tudo isso nos distrai. Mas à noite, quando todos já foram dormir,
é a hora de (emprestando as palavras de Camila Prietos) beber saudade. A hora
em que a sala se enche de vazios. A hora em que a tua imagem invade o quarto escuro.
E eu reconto as tuas histórias, todas elas sempre cheirando a café. A mesa da
tarde posta só até a metade dizendo que era para poucos, somente para os
privilegiados que tinham o deleite da sua presença todos os dias. Eu quero re-escrever
aquele poema "Pó de saudade"(Preciso encontrá-lo!). Preciso dele agora! E quando
eu der de beber saudade não terei medo da embriaguez. (Ou devo ter?) Vou pensar
que estarei de novo acariciando teus cabelinhos grisalhos. Vou pensar que
estarei de novo a esperar a novela das seis contigo. Vou pensar que estarei de
novo esperando teus chás e compressas quentes na hora da dor... Quando se bebe
saudade não há limites. Eu revivo o que eu precisar reviver. Será que eu posso,
vó?
Escrever um livro é
como gerar um filho. Primeiro a gente deseja, espera, anuncia. Só depois gesta.
E este construir dentro da gente não é nada fácil. É uma tarefa sofrida deixar
brotar de dentro de nós a palavra dura e ficar acrescentando água até ela ficar
molenga e instalar-se inteira, tomando a forma de letra na página branca.
Ninguém disse que seria fácil. Inclui apagar, revisar, dar para o colega ler, digitar,
ajeitar na folha, ler em voz alta pra testar o som da palavra, e depois voltar,
apagar de novo, e voltar, ler de novo... E depois desta luta de vir a ser, os
textos se colam um no outro feito luva na mão e tomam a unidade de obra. Mas
após assumir a ideia de ser livro ele precisa se fazer objeto concreto na mão
do leitor. E aí travamos uma outra luta. Arrecadar dinheiro, fazer a capa,
negociar com a editora, discutir prazos e preços. É a parte prática de ser
livro. Mas no final disso tudo... Ele se encontra ali, na nossa mão, enquanto
folha nova que brota da árvore... É um momento mágico. Como aquele em que a mãe
fita pela primeira vez o seu rebento e não consegue segurar a emoção.