quarta-feira, 30 de dezembro de 2009
URBANA VISÃO
A distinta moça de macacão amarelo é magra de nascença, loira de ocasião e negra de certidão. Solta seu brado retumbante a fim de tomar de volta o lugar no mundo que lhe tomaram à força. Mas o que toma são nossos olhos, com sua roupa que mal lhe esconde os glúteos.
DOENTE
Meu computador caiu doente e me custa escrever com caneta. Tenho dito que ele morreu, mas exagero. Há quem carregue nas tintas, eu nas palavras. Não na quantidade, mas no tanto que elas significam, é vital que estejam sempre inchadas de possibilidades. Com a máquina de férias, estou por demais incomodada. Escrevo a todo momento, mas deixo escapar os vocábulos, que se perdem pela falta de registro. Pouca coragem de pegar a caneta e este caderno. Cá dentro d’alma continuo todos os meus livros inacabados. Há o perigo de que nunca ganhem letra, tinta, muito menos impressão ou figura de eternas. Inauguro uma nova era: a da volta às canetas, lápis e cadernos. Será que este livro sai?
domingo, 1 de novembro de 2009
SÓ-LILÓQUIO
Deixa, deixa eu te ver inteiro nem que seja só a parte que se solta sozinha e anda entre nós sem precisar pedir, vem, deixa que eu te dispo sem que você precise permitir, eu te desejo assim, sozinha, de um lado só, do lado mais bonito, do lado que me cabe eu me jogo assim em cima do seu corpo sem que você precise mover um músculo porque eu te amo e posso te possuir, assim inerte de todo desejo ou luxúria, não é necessário que me beijes, deixa que te percorro o corpo com a minha língua magna e farta, ela vale pelos teus lábios e pelos meus, ela se basta, o meu amor se basta, deixa que eu te penetro a carne dura e febril, e se não é do lado direito que seja do esquerdo, que não é o lado certo mas é aquele que a gente tem, que a gente sente, é por ele que entra a luz negra e pouco fértil das mágoas, se você já não tem vida que bebas a minha, que bebas dos meus seios todas as dores e as palavras que você não soube dizer, todos os poentes que passaram e que você não viu, eles não se repetem mas não tem nada não, porque eu vi e os transformei em gozo e letra, só é preciso agora que você me aceite assim de passo passivo e frio, mas me aceite como quem estivesse jorrando uma vida que não te pertence mais, mas pulsa no leite quente que brota de mim como se de ti viesse. Deixa...
PELE NOVA (DESCASCAR-SE)
Toda mudança é clara e bem vinda se não quiser tomar de mim algo que fui e que não dá mais pra ser, algo que me foge como quem de longe vê o caminho mas não consegue chegar lá. Eu chego. Devagar, de tanto vagar eu enxergo as brumas altas que estão na cara de todos os mortais, mas é preciso cegar-se por dentro para se enxergar, tudo é tão claro como a cegueira branca branda do Saramago, que me toma a alma e nem pede assim: deixa eu ficar, deixa, que estou longe e larga de casa. É uma pele nova que se solta de mim nem preciso descascar-me, é tão fácil, vem de leve logrando-se enlameada de mim, como de noite achegar-se num ombro que não veio, mas eu vejo, porque me cega a alma esta clareza de tudo, este desejo profético de ver o belo onde ele se encalacra, e se perde, se entoca como rato em toca de bandido, encarcerado como loucos em seus retumbantes manicômios.
terça-feira, 27 de outubro de 2009
MAIS
É mais do que deflorar a manhã que em sua crosta hostil impõe-se enquanto nevoeiro e enquanto hora. É mais do que dissipar as chamas da noite que se anuncia em oscilações oníricas. É mais. É mais que esfaquear a tarde em microscópicos fragmentos vis e depois recolhê-la em flor a cada novo crepúsculo. Sustento que é mais que isso. É mais que lutar com a pedra em seu rígido fastio e tecê-la em manto de eternidade. Talhada a lágrima, não faço mais que minha obrigação. Espero. Contento-me em debulhar relógios. É só o que me resta.
18 de junho de 2007.
(no ônibus, depois da observação de um nevoeiro)
18 de junho de 2007.
(no ônibus, depois da observação de um nevoeiro)
BURACO
Inventei-me e espiei pra dentro como quem cava um buraco. Mas eis que percebo o óbvio: faltam-me as unhas crescidas para ajudar na cava, Faltou um pedaço grande quando terminei – ou supus ter terminado – a invenção de mim. Muitos me olham turvo torto como se eu nem gente fosse. Finjo não estar aí para esta gama de coisas, tento enxergar por dentro da nuvem - que de tão cinzenta me anuvia alma – ou sigo no labutar a construir o pedaço que falta. Encontro um toco de árvore e penso em aproveitá-lo mas é tarde. Todos os mortos já têm suas covas.
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